Quando o tempo para. Uma tarde com Xhevdet Rexhepi e o Minute Inerte.

Xhevdet Rexhepi

Durante a semana da Watches and Wonders, Genebra pulsa num compasso diferente. O ar carrega a expectativa do novo, a reverência pelo legado e a inquietação criativa que move as engrenagens do mercado relojoeiro. Mas foi longe do brilho das vitrines, afastado dos estandes e dos coqueteis lotados, que vivi uma das experiências mais significativas da minha jornada como entusiasta: uma visita ao ateliê de Xhevdet Rexhepi, onde o tempo, literalmente, aprende a esperar.

Ao chegar na rua tranquila onde se localiza o novo espaço de Xhevdet, a primeira sensação é de estranhamento. Tudo parece calmo demais para abrigar uma revolução. A fachada é discreta, o bairro modesto, sem placas chamativas nem vitrines exuberantes. Mas assim que a porta se abre, a atmosfera muda completamente. O ateliê recém-reformado é uma extensão precisa da cabeça e da alma de seu criador. Há uma beleza silenciosa em cada linha arquitetônica, em cada textura escolhida, em cada objeto de design que preenche o ambiente. Não é um laboratório, é quase um santuário. Um local  que não se fabrica apenas relojoaria, mas principalmente ideias.

Fui recebido pelo próprio Xhevdet, que imediatamente desmontou qualquer cerimônia com um sorriso sincero e uma conversa natural. Em poucos minutos estávamos conversando como velhos amigos, trocando ideias sobre arquitetura, carros vintage e até memes de relógios. A informalidade era absoluta, mas nunca vulgar. O entusiasmo com que ele falava sobre cada detalhe do espaço, sobre os projetos em andamento, e sobre sua relação com o tempo, era contagiante. Ele fez questão de apresentar cada membro de sua equipe, explicando de onde vinham, como se conheceram, o que cada um fazia. Pessoas que claramente não estavam ali apenas para “trabalhar com relógios”, mas para participar de algo maior. Um projeto artístico, mecânico e coletivo. Tudo com uma naturalidade rara em ambientes tão tecnicamente exigentes. Não me lembro de ter me sentido tão à vontade em um espaço criativo desse nível. Se naquele momento ele dissesse “vamos ali tomar uma cerveja e continuar o papo”, eu iria sem pensar duas vezes.

Mas o ponto alto da visita, claro, foi conhecer o Minute Inerte. Nada do que eu tinha visto em fotos ou lido em artigos me preparou para o que foi encontrar essa peça ao vivo. A primeira impressão é de sobriedade: uma caixa de platina de 38 milímetros, proporções equilibradas, mostrador azul-claro com acabamento singular, ponteiros refinados e índice aplicado. Mas basta alguns segundos de observação para perceber que ali acontece algo especial. Algo que não se vê, mas se sente.

O ponteiro dos segundos se move com fluidez até completar 58 segundos exatos , e então para. Dois segundos de silêncio. De suspensão. E nesse momento, o ponteiro dos minutos salta para a próxima posição e os segundos retomam seu curso. É como assistir a uma respiração. Um compasso poético. Uma dança perfeitamente coreografada entre pausa e avanço. E o mais impressionante: tudo isso ocorre com precisão absoluta, sem comprometer a cronometria do movimento. O relógio respeita a lógica mecânica suíça, mas também provoca sua linearidade com um gesto artístico. Como um bailarino que insere um passo inesperado em uma coreografia clássica.

A ideia nasceu da lembrança dos relógios das estações ferroviárias suíças, onde o ponteiro dos segundos para momentaneamente no 60 antes de dar lugar ao avanço do minuto seguinte. Só que ali, esse movimento é controlado por impulsos elétricos. Já no Minute Inerte, tudo é puramente mecânico. E aí está a genialidade de Xhevdet: não se trata de reproduzir, mas de reinterpretar. Ele pegou algo funcional e o transformou em um símbolo. Em um momento de contemplação.

Relógio tradicional das estações de trem na Suíça

O movimento é de corda manual, com 69 horas de reserva de marcha e 18.000 alternâncias por hora. A arquitetura é aberta na parte inferior do mostrador, onde é possível observar parte do sistema de parada e salto. Os acabamentos são de altíssimo nível: anglage manual em todas as pontes, chatons aplicados, polimentos contrastantes, e uma construção que lembra o estilo George Daniels. Não por imitação, mas por afinidade estética e respeito à tradição. O mostrador, com sua textura opaca e tons suaves, remete de imediato à elegância dos relógios de bolso do século XIX, com seus contrastes sutis e superfícies que parecem absorver a luz em vez de refletir. Assim como o desenho contido da caixa e dos lugs, que evocam o trabalho de Jean-Pierre Hagmann. Tudo ali dialoga com a herança da relojoaria clássica, mas sem jamais se submeter a ela.

Mas, de forma curiosa e quase inesperada, Xhevdet me revelou que as cores dos mostradores do Minute Inerte foram inspiradas em referências bastante inusitadas: o tom azul foi diretamente retirado de uma camisa usada por Mike Tyson, uma imagem que lhe marcou pela intensidade da cor, enquanto o verde nasceu da tonalidade de um raro Vacheron Constantin encomendado sob medida por Muammar Gaddafi. É essa combinação improvável entre tradição e iconoclastia que torna a criação de Xhevdet tão singular: ele busca no inesperado aquilo que muitos insistem em encontrar apenas no passado. Xhevdet é um desses criadores raros que conseguem unir profundidade técnica com uma visão artística autêntica.

Xhevdet Rexhepi

Agora, falando um pouco do nosso artista em questão. Nascido no Kosovo e criado na Suíça, ele começou como marceneiro, o que talvez explique sua obsessão por linhas, proporções e texturas. Foi o irmão, Rexhep Rexhepi, quem o introduziu na relojoaria. Ainda tímido, entrou na Patek Philippe e logo impressionou seus instrutores pela rapidez com que assimilava as técnicas. Trabalhou por três anos como aprendiz até se juntar à Akrivia, onde passou sete anos colaborando com o irmão em projetos que conquistaram o mercado, a crítica e o GPHG.

Mas ele precisava de mais.  Precisava de espaço para contar sua própria história, com sua própria linguagem. “Poderia ter feito algo bonito antes, mas não seria eu”, me disse, em uma das muitas conversas que tivemos naquela tarde. E foi essa insistência em encontrar sua voz, esse perfeccionismo paciente, que moldou o Minute Inerte. Ele levou mais de dois anos desenhando e testando o modelo até sentir que estava pronto. Cada detalhe, das curvas da caixa ao ritmo do salto dos minutos, carrega sua assinatura e principalmente, seus gostos.

Não é exagero dizer que o Minute Inerte é uma das criações mais ousadas da relojoaria contemporânea. Não por seu tamanho, nem por sua complexidade visual, mas por aquilo que exige de quem o cria e de quem o observa. Ele não tenta competir com turbilhões nem calendários perpétuos. Sua inovação está no gesto, no conceito, na pausa. É um relógio que ensina a esperar. Que cria expectativa. Que transforma a leitura do tempo em uma experiência sensorial.

A peça será limitada a 50 unidades, com preço inicial de 89 mil francos suíços. Mas se você perguntar a mim, esse número não diz quase nada sobre seu valor real. O Minute Inerte é um manifesto. É o primeiro capítulo de um livro que está apenas começando. E estar lá, naquele momento, com ele nas mãos, diante do criador, foi como ler a primeira linha com o autor ao lado, explicando cada palavra, cada pausa, cada respiração.

A visita ao ateliê de Xhevdet Rexhepi não foi apenas um privilégio profissional. Foi, acima de tudo, um encontro humano, desses que ressoam muito além da paixão por engrenagens, mostradores e acabamentos. Entre conversas técnicas, silêncios carregados de admiração e risadas espontâneas, tive a certeza de estar diante de alguém que não apenas domina a relojoaria, mas vive a relojoaria com alma, sensibilidade e uma autenticidade cada vez mais rara nesse meio.

E se me permite um último registro pessoal: saí de lá com a sensação de que, discretamente, um novo grail pode ter surgido na minha jornada. Um relógio que me marcou de forma sincera, não apenas pela técnica ou pelo acabamento, mas pela história que carrega, pela ideia que representa, e pela conexão que criei.

Agradeço profundamente ao Xhevdet por abrir não só as portas do seu ateliê, mas por abrir espaço para uma troca genuína, generosa e inesquecível. Sua forma de ver o tempo e de nos fazer senti-lo, permanece comigo. E, de agora em diante, em cada relógio que eu observar, talvez eu espere um segundo a mais… apenas para lembrar como é bonito quando o tempo para.

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Luigi Latini Couro